domingo, 16 de agosto de 2009

Entrevista

Victor Afonso é seguramente um dos grandes valores da música electrónica de índole experimental em terras lusas. Sob o pseudónimo
Kubik cria universos musicais peculiares que bebem influências tanto
na pop ou rock como no jazz ou música clássica. Mas não é só a música
que o move. Fomos descobrir de que é feito o quotidiano deste músico,
programador cultural e cinéfilo da Guarda.

Joana Coimbra Martins, entrevista para a revista A Metáfora, 2008

Se estivesse perante um auditório de pessoas ao
qual teria de se apresentar, como o faria? Quem é
e o que faz Victor Afonso?

Diria que sou um cidadão comum que cedo despertou
para a música e para as coisas da cultura em
geral. Licenciei-me em Ensino de Música pela Escola
Superior de Educação da Guarda em 1994 e fui professor
do Ensino Básico durante 7 anos. Em 2000 fui
convidado pela Câmara Municipal da Guarda para
coordenar um espaço cultural chamado Mediateca
VIII Centenário, no qual organizei dezenas de actividades
para estudantes e professores – desde conferências,
workshops, ciclos de música e cinema, etc.
Há mais de dez anos que colaboro regularmente em
jornais, revistas e sites na área da opinião cultural e
também tenho sido convidado como orador em
palestras sobre música, cibercultura e cinema.
Desde 2005 até à presente data que trabalho a
tempo inteiro no Teatro Municipal da Guarda, como
responsável pelo Serviço Educativo. Paralelamente,
tenho já um percurso de 20 anos como músico, com
experiência em bandas pop, rock, e música improvisada.
Há dez anos que mantenho, sozinho, o projecto
Kubik, vocacionado para a electrónica “free
style”, ou seja, aberta a todos os estilos musicais.
Editei até à data dois discos com excelentes críticas
da imprensa e tenho-me também dedicado a compor
música original para teatro, cinema mudo, dança
e perfomance.

De onde vem o seu nome artístico, Kubik?
Há quem julgue que Kubik é uma derivação do cubo
mágico Rubik ou do nome do realizador Kubrick. A
verdade é que não tem nada a ver com ambos (apesar
de gostar muito de Kubrick e de o lançamento
do meu projecto ter coincidido com a morte do
cineasta de “Shining”). Escolhi o nome por ser curto,
forte em termos fonéticos e de fácil memorização.
Pensava que era um nome original, e só mais tarde
me dei conta que existem músicos de jazz com
apelido Kubik e até uma banda de heavy-metal da
Indonésia com este nome!

Como foram os seus primeiros contactos com a
música? Qual foi o seu primeiro instrumento e a
que idade?

Os primeiros contactos aconteceram quando eu
tinha 10 anos com aulas particulares de guitarra e
piano. O primeiro instrumento que aprendi a tocar
foi a guitarra clássica. Já adolescente aprendi também
a tocar guitarra eléctrica, baixo eléctrico, bateria
e teclados.

Por vezes, os músicos ou artistas relacionam a sua
entrada no mundo das artes com o tipo de educação
que receberam dos pais e o ambiente em
que viviam. Foi o seu caso? Tem background familiar
numa qualquer área artística e se sim como é
que isso o influenciou?

É uma pergunta interessante. Por acaso o meu ambiente
familiar não foi muito propício no sentido de
ter tido uma educação de rigor cultural, isto porque
os meus pais só tinham a escolaridade primária
(nenhum tem formação musical ou literária). No entanto,
apesar de não terem essa educação, sempre
me proporcionaram condições de aprendizagem favoráveis
a uma formação cultural sólida e diversificada,
através de aulas de música durante anos, do
dinheiro que me davam para comprar jornais, discos,
livros, filmes e revistas (numa altura em que a
internet era uma miragem) e do investimento no
curso superior de música. Por outro lado, o facto de
ter vivido até aos 8 anos numa cidade cosmopolita
como Paris, abriu-me horizontes culturais que de
outra forma não teria possibilidade de ter (em
França tive aulas de expressão plástica e musical). Já
na adolescência e a viver na Guarda tive a sorte de
alguns dos meus melhores amigos gostarem de boa
música, de bom cinema e de boa literatura, facto
que influenciou de sobremaneira a minha formação
geral.

Paralelamente à música tem um gosto apurado
para o cinema. Quais são as suas referências e o
que o fascina mais nesta arte?

Sim, o cinema desde cedo exerceu forte influência
no meu imaginário e na minha formação cultural.
Como vivi sempre na Guarda que está geograficamente
perto de Espanha, tive a oportunidade de ver
bom cinema na televisão espanhola – clássicos e
filmes de autor. Por outro lado, ainda em adolescente,
por influência de dois amigos cinéfilos mais
velhos vim a conhecer muitos realizadores e filmes
que passaram a fazer parte das minhas preferências.
Aprendi a ver o cinema como uma arte muito para
além do mero entretenimento efémero, uma expressão
artística total capaz de proporcionar momentos
de fruição estética inigualável. Como dizia o
cineasta francês Robert Bresson, o cinema é, antes
de tudo, uma “escrita”, uma linguagem e uma expressão
de grande rigor formal com ligações a outras
artes que me interessam, como a música, a pintura
e a fotografia. As minhas referências no cinema são
múltiplas e diferenciadas: cinema mudo expressionista
e de vanguarda (Murnau, Lang, Vertov, Eisenstein...),
mas também o burlesco americano com os
génios de Charlie Chaplin e Buster Keaton; depois
há Dreyer, Peckinpah, Bergman, Sokurov, Hitchcock,
Cronenberg, Orson Welles, Cassavetes, Fellini. Tenho
ainda uma especial adoração por cinco ou seis
cineastas que me marcaram especialmente e que
não me canso de rever: Jacques Tati, Stanley
Kubrick, Andrei Tarkovski, Woody Allen, Luís Buñuel
e David Lynch.

Esteve envolvido na criação de bandas sonoras.
Como decidiu enveredar por essa via?

A minha primeira experiência na composição de
uma banda sonora original para um filme foi em
2003 com a obra surrealista “Un Chien Andalou”
(1928) de Luís Buñuel, com participação do pintor
Salvador Dali. Comemoravam-se 20 anos da morte
do realizador espanhol quando fui convidado para
fazer essa banda sonora, que apresentei ao vivo em
muitos cineclubes e salas do país. Em 2005 aceitei
uma encomenda do festival de cinema Imago
(Fundão) para musicar, conjuntamente com a
orquestra de percussão e coro da Covilhã, o filme
mudo “Entr’acte” (1924) de René Clair. Mais recentemente
fiz a música do filme “A Felicidade” (1934)
do realizador russo Alexandre Medvedkine, a convite
do festival de artes performativas “Escrita na
Paisagem” de Évora. O que me agrada no trabalho
de criação musical e sonora para filmes mudos é o
desafio criativo em pontuar as imagens, correspondendo
às exigências dramáticas e narrativas do
próprio filme.

É criador do blog "O Homem Que Sabia Demasiado",
onde artes como a música, cinema, literatura
ou até assuntos ligados aos media têm lugar. A actualização
do blog é bastante frequente. Como tem
tempo, para além da sua actividade profissional,
para consumir e criar tanta informação? Dedica
bastante tempo à leitura de jornais, internet, entre
outros?

O blog fez um ano de actividade em Novembro. Decidi
criá-lo para servir de suporte informativo dos
temas de que gosto (pessoal e profissionalmente):
música, cinema, audiovisual, literatura, artes e cultura
em geral. Ao fim deste primeiro ano de funcionamento
já conta com quase 60 mil visitas e
perto de mil “posts” publicados, com actualização
diária. Na verdade, admito que nem sempre é fácil
manter um blog com estas características derivado
dos meus afazeres profissionais e familiares. Preciso
de estar permanentemente actualizado e de consumir
muita informação que vou buscar a revistas,
jornais, sites, televisão, para produzir os conteúdos
que tenho colocado online. Mas ler é algo que eu já
faço há muitos anos, não é apenas por causa do
blog. Por outro lado, o facto de ser actualizado diariamente,
exige de mim um esforço acrescido e resulta
num estimulante exercício intelectual que me
leva a fazer muitas pesquisas e recolha de informação.
O blog, cujo título é decalcado
de um filme de Hitchcock, permite-me
dissertar e opinar sobre muitos assuntos
de forma livre, sendo também um
espaço de discussão democrática (os
comentários são abertos a qualquer
pessoa) sobre inúmeros temas relacionados
com as artes e a cultura. Escrevo
mais sobre cinema do que sobre música, mas
também de livros, publicidade, novos media, fotografia,
etc.

Vive na Guarda. Acha que as cidades do interior -
ou cidades mais pequenas - estão bem servidas a
nível cultural? Quais são as lacunas que existem a
esse nível?

Há 20 anos sentia-se um claro atraso em relação à
oferta cultura na Guarda. Não havia política cultural
nem equipamentos ou espaços culturais para as
artes do espectáculo. Desde há uns anos a esta
parte, e sobretudo desde a abertura do Teatro Municipal
da Guarda em 2005, a dinamização cultural
na Guarda cresceu em dimensão e qualidade. E é
importante que uma cidade do interior como a
Guarda tenha percebido que a cultura pode e deve
servir de trampolim de desenvolvimento de toda a
região centro, como está a acontecer neste momento.
A nível de equipamentos culturais, a Guarda
vai inaugurar este mês uma biblioteca municipal de
grande nível, a Biblioteca Eduardo Lourenço. Daí
que estas duas estruturas – Teatro e Biblioteca –
sejam dois grandes pólos de desenvolvimento cultural
da cidade, para o presente e para o futuro, que
em nada ficam a dever a cidades de maior dimensão.
É licenciado em Educação Musical. Noutra entrevista
sua diz que o curso o desiludiu. Porquê?
Basicamente, porque era deficitário em termos de
qualidade dos professores e não foram ministrados
determinados conteúdos curriculares importantes
para a formação musical e cultural dos alunos. Foi
um curso ainda muito apegado à estrutura curricular
do velho conceito de conservatório de música,
com uma visão muito estrita e fechada do fenómeno
estético da música e das artes. Resumia-se ao
ensinamento teórico da linguagem musical erudita
(ou música clássica), como se todos os outros
géneros musicais fossem menores e não fizessem
parte do panorama cultural contemporâneo. Os
conteúdos nunca versavam sobre fenómenos estéticos
ligados à arte e cultura comtemporâneas -
nunca se falou em John Cage ou Stockhausen, em
música improvisada ou electroacústica, em rock de
vanguarda, na fusão de linguagens musicais, etc.
Todas estas vertentes tive de as aprender e assimilar
de forma totalmente auto-didacta. E ainda bem que
o fiz...

Qual foi até agora, enquanto músico, o momento
mais marcante na sua carreira e porquê?

Sem dúvida, o momento em que fui convidado pessoalmente
pelo músico americano Mike Patton para
fazer a primeira parte do concerto do seu grupo
Fantômas, na Aula Magna de Lisboa, em Maio de 2004.
Sempre tive uma especial admiração pelo ex-músico
dos Mr. Bungle, e ouvir da sua própria boca que
gostava muito do meu trabalho e que me queria
convidar a tocar na primeira parte do seu supergrupo,
foi um momento incrível. E tocar sozinho,
numa sala mítica como a Aula Magna, para uma assistência
de mil e tal espectadores, foi deveras especial.

O que o inspira?
O cinema e as imagens, muito. Parto também da realidade
quotidiana para construir universos sonoros
surreais, corporizados numa espécie de carrossel
mágico desgovernado e imprevisível. É assim que
gosto de classificar a minha música.

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